Tocadas – Gravina – 04/03/09
Havíamos acabado de gravar ao vivo nada menos que dez músicas, todas na mesma tarde. Cansados, porém felizes. Eu e Vinicius conversávamos na varanda enquanto Fabrício acabava de salvar a décima música, a Marcha Turca do Mozart na versão forroque dos Mensageiros.
Apoiado no balcão, eu observava a marcha de duas formigas. Eram de tamanho médio para grande, da cor do caramelo queimado, bem maiores que as formigas de açúcar mas não tão agressivas em sua aparência quanto as formigas cabeçudas. Essas até que pareciam bem amigáveis.
Foi quando notei uma curiosa coincidência. As duas formigas arrastavam as patas traseiras no azulejo, movimentando apenas as quatro da frente.
Inicialmente, distraído e criativo, imaginei que fosse algum ritual de acasalamento das formigas. Talvez esse pensamento tenha ocorrido porque junto com as patas de trás as duas arrastavam também seus volumosos bundões no chão.
Chamei a atenção de Vinicius para aquele estranho fenômeno. Logo em seguida meu riso ficou triste, pois vi diversas formigas agonizando não muito longe de onde as minhas duas se arrastavam. Aparentemente, algum inseticida as envenenara. Algumas já estavam bem mortas, a maioria ainda se contorcia. As duas que eu vira se arrastando eram as que estavam melhores.
“Cada uma, uma vida”, disse Vinicius. “Vou aliviá-las de seu sofrimento.”
E foi esmagando as formigas moribundas com a ponta do dedo, uma por uma. Eu assistia fascinado. O conceito de ahimsa ou não-violência parecia estar em cheque. A eutanásia das formigas parecia moralmente correta. Ainda assim, era uma violência o que estava sendo cometido. Alegremente ignorando tais sutilezas filosóficas, Vinicius prosseguiu rápido e eficiente com o extermínio.
Acontecimentos como esse podem ser chamados de insignificantes, mas também podem guardar muitos ensinamentos escondidos. Naquele momento, me tornei consciente do quanto regras de conduta ética podem ser frágeis diante de eventos concretos. Quase sempre é muito mais fácil julgar que se por no lugar do outro. Daí tantas divergências entre os homens.
Agir ou não agir, tanto com relação às formigas como quanto com os maiores problemas da vida, são uma e a mesma coisa, do ponto de vista da escolha. Escolher não fazer nada é também uma ação. A neutralidade é impossível.
Ao pensar nisso meu olhar pousou em uma formiga que até então havia passado despercebida. Ainda vivia, mas era evidente que estava além de qualquer ajuda. Ou talvez não.
Concluída a tarefa no computador, Fabrício reuniu-se a nós a tempo de testemunhar a minha decisão.
“Aqui ó, Vinicius”, eu disse. “Sobrou mais uma.”
1 Comments:
Uhu! Pegou fundo isso...
É assim, sim... "a neutralidade é impossível."
Post a Comment
Subscribe to Post Comments [Atom]
<< Home